quinta-feira, 5 de junho de 2008

Igreja Católica: tentativas para conter a aprovação da lei do divorcio no Brasil

Desde a implantação do regime republicano a sociedade brasileira vem discutindo a possibilidade de se implantar o divórcio no país. Contudo, a partir de meados do século XX os debates ganharam mais espaço, até que 1977 a lei foi aprovada.

A lei do divórcio diz respeito à forma como uma sociedade historicamente determina institui uma norma jurídica para regular uma das instituições mais duradouras dos países que seguem o cristianismo, principalmente, o de Roma. Neste caso, estamos tratando sobre princípios e postulados que regulam os termos da vivência social nas múltiplas relações existentes entre indivíduos e grupos sociais.

Nesse texto analisaremos a participação da Igreja Católica enquanto uma instituição que tentou de varias formas conter os movimentos que tentavam aprovar a lei do divorcio no Brasil. Poderemos notar a força que o discurso dessa instituição tinha no período e os artifícios de que ela se utilizou para tentar conter a evolução social nesse caso vinculada a aprovação de uma lei. Teremos que levar em conta que o nosso pais já estava totalmente secularizado, e que isso não implica o rompimento total quando da formulação de nosso Código Civil de leis que estavam ligadas a religião. Notaremos no discurso de juristas, deputados e senadores cargas religiosas com grande relevância. E não poderemos deixar de notar como a igreja se preocupa com a família.

Segundo Foucault: “em qualquer sociedade, existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social...”[1]. Podemos dizer então, que o poder está disseminado pelo corpo social vindo de variados lugares, e tendo destinos distintos e chegando assim na família. Para António Manuel Hespanha: “a imagem da família e do mundo doméstico está presente por todo o lado no discurso social e político da sociedade...”[2]. Notamos então que tratar da família é tratar de Estado, da política e da economia, logo, legislar sobre os assuntos familiares, trata-se de entender o funcionamento daquela que é vista como “a primeira comunidade”. Neste caso, estamos nos referindo a uma lei que diz respeito ao governo da casa”[3], e sendo a família o fundamento da república, o regime (ou governo) da casa é também o fundamento do regime da cidade”[4]. Então, baseando-me na passagem acima, posso afirmar que legislar sobre a família é regular um dos aspectos da vivência social. Nas palavras de Hespanha a expansão familiar não parou no Estado:

“zona de expansão do modelo doméstico é também o domínio das relações internas à comunidade eclesiástica (...) a Igreja é concebida como uma grande família, dirigida por um pai espiritual [Cristo ou o seu vigário, o Papa]...”[5].

Com a passagem acima podemos entender melhor a luta católica pela indissolubilidade do casamento, porque tirar o poder do pai sobre a família seria como quebrar a hierarquia de Cristo dentro da Igreja. Assim podemos voltar a Hespanha: “tudo isto é bastante para mostrar o papel central que, na imaginação das relações políticas, é desempenhado pelo modelo da família. Modelo que, por outro lado, obedece a uma impecável lógica estruturante, fundada em cenários de compreensão do relacionamento humano...”[6]. Notamos que a Igreja lutaria muito pela indissolubilidade, pois essa garantia de certa forma a hierarquia dentro da própria Igreja.

Podemos agora mostrar como se deu esse debate no campo político. O senador Nelson Carneiro, apesar de ser católico, começou a sua luta em favor da implantação da lei do divórcio no país. Em 1947 apresentou projeto assegurando o direito de pensão à companheira, sendo aprovado cinco anos mais tarde. Em 1949, conseguiu a aprovação de um projeto que possibilitava o reconhecimento de filhos fora do casamento, chamados então de filhos adulterinos. Para aprovar essa lei teve ajuda de Arruda Câmara – padre que sacrificou a carreira eclesiástica para lutar no Parlamento –, grande opositor da aprovação do divórcio, inicialmente apresentada por Nelson Carneiro em 1951. Segundo palavras do próprio Senador: “estivemos sempre juntos nos debates, ainda que geralmente em pólos opostos. Para impugnar meus projetos, especializou-se em Direito de Família, fez-se membro da comissão de constituição e justiça”[7]. Sem duvida Arruda Câmara foi o grande agente da Igreja no Parlamento, e sempre esteve presente em seu discurso uma passagem da Bíblia que para ele e para os católicos tem muito significado, Mateus, 19: “Assim, já não são dois, mais uma só carne. Portanto, não separe o homem o que Deus uniu”. Outra obsessão de Câmara era as diretrizes apontadas no Concilio de Trento.

Nelson Carneiro e Câmara fizeram um duelo que durou mais de duas décadas. Esse duelo foi marcado por posições irredutíveis de ambos os lados, de ideologias diferentes quanto a responsabilidade pelo casamento ficar a cargo do Estado ou da Igreja.

Agora tentaremos mostrar como as considerações da Igreja em relação ao assunto apareceram no discurso jurídico nesse período. Como já afirmamos iremos perceber vários juristas colocados ao lado da igreja e de suas afirmações e um deles foi o ministro do Supremo Tribunal Federal Hahnemnn Guimarães que em 1947 escreveu as seguintes palavras na Revista Forense: “o casamento era um mistério, com que, segundo palavras sacramentais, se encontrava o bem, evitando-se o mal, isto é, tudo aquilo que passa. Como em todos os mistérios, bem é o eterno atingido no casamento pela imortalidade da espécie”[8]. Nas palavras acima já notamos uma carga religiosa e a finalidade do matrimônio para a Igreja, que é a perpetuação da espécie, e os filhos do matrimônio devem ser educados tanto pelo homem quanto pela mulher, “se o amor da mãe é muito intenso na intimidade da infância é o pai que ao longo de toda a vida proporciona os exemplos de conduta”[9]. Assim se houver a dissolução do vínculo matrimonial a educação dos filhos ficaria comprometida, segundo os ensinamentos da Igreja.

Hahnemann Guimarães ainda diz que “a revolução burguesa, abrindo caminho para os excessos do individualismo, tinha de se bater pelo divórcio (...) e com o individualismo, espalhou-se o divórcio e ameaça conquistar a minoria dos Estados que ainda não o admitem”[10]. A sociedade burguesa, com a lei civil, pressupõe que o casamento tornou-se um contrato, logo, rompe com a idéia de casamento como sacramento. Se é um contrato, pois você vai a um cartório se casar, parte-se do pressuposto que pode haver um distrato, ou seja, o divórcio. No entanto a igreja e seus agentes não abriram mão do matrimônio como sacramento e isso levou no Brasil a que muitas pessoas se casassem só no religioso.

Por fim em seu texto Hahnemann afirma que “só a família baseada na união conjugal indissolúvel pode formar homens capazes de afeições generosas, e estas são o caminho único para a desejada concórdia humana (...) defendendo o princípio da indissolubilidade do casamento, estamos continuando a marcha que nos há de levar a um mundo melhor”[11]. Podemos notar nas palavras do ministro, que ele acreditava que apenas com a indissolubilidade do vinculo matrimonial o nosso país poderia um dia ser pacificado, e marchar para ser um lugar melhor para se viver, aqui temos uma concepção de que o divórcio levaria a sociedade ao caos e a desordem porque poria fim à base social que seria a família unida pela indissolubilidade.

Em 1959 o livre-docente da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil Ebert Chamoun fazia algumas considerações sobre a natureza jurídica do matrimônio: “o matrimônio é o revestimento jurídico de uma união natural (...) os fatores que intervieram na criação do matrimônio, em todas as épocas, foram, com efeito, de duas ordens: o de ordem biológica e o de ordem social. O fator biológico é evidentemente o instinto sexual (...) O fator social ou gregário defini-se pela necessidade incontida que sente o homem de viver sempre à sombra do seu semelhante...”[12].

Ebert Chamoun afirma que a união entre pessoas e um fator natural assim a necessidade jurídica da sociedade transformou no instituto do matrimônio, partindo dessa afirmação podemos dizer que um costume que era a união entre as pessoas se transformou em uma regra de direito o caminho que Marx afirmava ser o normal quanto ao regimento social. O livre-docente ainda diz serem dois fatores fundamentais para a criação do matrimônio: o sexual e o social, pensando assim ele quer dizer que o matrimônio é realizado para se obter liberdade sexual e que as pessoas se unem porque não conseguem viver sozinhas, no entanto podemos afirmar que não é necessário o casamento para a realização do ato sexual e que uma pessoa pode estar com a outra sem ter contraído matrimônio.

No decorrer de seu texto Ebert Chamoun definirá o que seria para ele a finalidade do matrimônio: “Finalmente, a procriação e educação da prole constituem o derradeiro escopo do matrimônio”[13]. Aqui percebemos uma clara carga religiosa no discurso do livre-docente, pois o que ele escreveu parece sair da boca de um clérigo defensor da indissolubilidade. Continuando em uma linha religiosa Ebert Chamoun faz a seguinte constatação “a primeira grande conseqüência jurídica da doutrina do matrimônio-sacramento é a indissolubilidade da união conjugal. A união entre Cristo e a Igreja é indissolúvel, logo a união conjugal que a representa, tem o mesmo caráter”[14]. Como já foi dito no anteriormente no texto a Igreja Católica estava se amparando nos juristas para segurar a evolução social.

Em um outro texto de 1959 Ebert Chamoun faz considerações quanto ao casamento enquanto contrato “Entre nós, já se batera contra a teoria do matrimônio-contrato Lafayette Rodrigues Pereira. “O casamento, atenta a sua natureza íntima”, escreve o civilista patrício, “não é um contrato, antes difere dele profundamente, em sua constituição, no seu modo de ser, na duração e alcance de seus efeitos. O casamento abrange a personalidade humana inteira; cria a família; funda a legitimidade dos filhos; dá nascimento e relações que só se extinguem com a morte: os direitos e obrigações que dele resultam trazem o cunho da necessidade e no que dizem respeito às pessoas, não podem ser alterados, modificados ou limitados pelo arbítrio dos cônjuges. Os contratos, ao contrário, têm por objeto atos individuais, temporários; interesses materiais, efêmeros e suscetíveis de apreciação monetária”. O casamento vai dessa forma alem de um simples contrato”[15].

Ebert Chamoun, apoiando-se nos pensamentos de Lafayette, tenta mostrar que o casamento não é um simples contrato, pensamento esse que é pregado pela igreja, no entanto o nosso código civil observa o casamento enquanto um contrato assinado pelas partes interessadas que até então não pode ser dissolvido. Podemos notar com os dois juristas citados o direcionamento que a Igreja realizou com seus membros para defenderem seus interesses no que diz respeito a indissolubilidade do vinculo.

Acredito que os autores que trabalhei nesse texto sejam suficientes para podermos mostrar alguns meios de que a Igreja Católica utilizou para tentar barrar a aprovação da lei do divorcio no Brasil.


[1] FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 6ª ed., Rio de Janeiro: Edições Graal, 1986. p. 179

[2] HESPANHA, António Manuel. Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos históricos-antropológicos da família moderna. Análise Social, vol. XXVIII 9123-124), Lisboa, 1993. p. 951

[3] Conforme HESPANHA, António Manuel. Op. Cit. p. 969

[4] Ibid. Op. Cit. p. 969

[5] Ibid. , p. 971

[6] Ibid. , p. 971

[7] CARNEIRO, Nelson. A luta pelo divórcio. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1973. p. 10

[8] GUIMARAES, Hahnemann. Sobre o divórcio. In: Revista Forense. Rio de Janeiro: vol. CXIII, setembro de 1947. p. 267

[9] HESPANHA, Antonio Manuel.Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos históricos-antropológicos da família moderna. Análise Social, vol. XXVIII 9123-124, Lisboa, 1993. p. 956

[10] Conforme GUIMARAES, Hahnemann. Op. Cit. p. 268

[11] Ibid, p. 271

[12] CHAMOUN, Ebert. Natureza jurídica do matrimonio. In: Revista Forense. Rio de Janeiro: vol. 183, maio-junho de 1959. p. 30

[13] Ibid, p. 31

[14] Ibid, p. 39

[15] CHAMOUN, Ebert. Natureza jurídica do matrimonio. Revista Forense. Rio de Janeiro: vol. 184, julho-agosto de 1959. p. 43

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